Você me atropelou pelo caminho, invadiu o sinal vermelho, atravessou
a contramão e me arrancou do meu ponto de segurança com um meio sorriso e
muitos olhares. Você não pediu desculpa, não perguntou meu nome, não sentou pra
conversar sobre o dia nem usou o tempo para puxar um primeiro assunto. Você
chegou. Foi só isso: sem pretensão de ficar e sem nenhuma vontade de sair. Se
instalou no sofá, na cama, na vida e no meu coração sem precisar se esforçar
pra isso. E talvez por isso, porque chegou sem esforço, que eu nem fiz força
para te mandar embora. Porque pareceu daqui que, mesmo você tendo me invadido
inteira, aquilo era natural. Que mesmo você tendo me jogado há quilômetros
de distância do meu ponto de apoio, aquilo era normal. Que mesmo você tendo
buscado em sua mente um assunto inusitado, aquilo me pareceu tão banal. E é por
isso que, mesmo sem ter se floreado, criado poemas, sem roupas bonitas e
declarações decoradas dessas de filme-brega-romântico não me assustei com sua despretensão
de quem tinha muita pretensão de ser meu.
Meu erro, talvez, foi não ter colocado fé que você era
decidido demais para, depois de ter se instalado aqui, aceitar sair. Meu
acerto, talvez, foi de não ter te dado a mínima atenção achando que poderia te
expulsar como fiz com todos os outros a qualquer momento daqui. Coitada de mim.
E coitado de você também, que deve ter se assustado com a bagunça que eu trazia
no peito, a escuridão da alma que eu camuflava com
sorriso-propaganda-de-colgate, o medo que eu sentia –e ainda sinto, vá, a quem
quero enganar? –que escondia e ainda escondo com jogadas de cabelos pro lado e
fugas com os olhos pra qualquer lugar só pra não precisar te encarar. Meu erro
foi não ter brigado com você por ter me roubado meu chão, meu mundo, minhas
certezas e meu coração. Ter gritado e te assustado com o quanto eu consigo ser
histérica. Ter te ferido com minhas unhas vermelho-azul-preto-poderosa de quem
passa muito tempo da vida arrumando-as numa tarde de ócio nada produtivo. Meu
erro foi ter te achado um carinha banal que não me arrancaria mais do que umas
risadas boas, uns suspiros idiotas e um
adeus-até-quem-sabe-um-dia-quando-eu-quiser-te-ligar sem dor no meu coração.
E agora eu tô aqui. E você aí. E entre a gente tem um mundo
de distância. A gente parecia que ia dar tão certo, né? Mas a gente vinha de
estradas diferentes e apenas batemos. Chocamo-nos um no outro e nos chocamos
com a intensidade do amor que apareceu sem cartão de
visita-flores-cortejos-beijos-na-chuva, que simplesmente nos pegou pelo
caminho, nos apanhou: não soltou. Você parecia tão pronto quanto eu pra isso.
Nós parecíamos tão perdidos mesmo permitindo nos sentir, tentando nos enganar
que era só mais um caso pra se contar, virar uma letra de música ou, voilá,
esse texto meia-boca pra um cara de meio-sorriso sobre um sentimento
meio-sem-sentido perdido no caminho.
Como é que a gente faz, agora que você me atropelou? Como é que
eu cuido dos machucados, se você resolver ir? Como é que fica a bagunça, se você
não me ajudar a limpar? Como é que eu,
forte-insensível-dona-do-meu-mundo-rainha-do-meu-destino aprendo assim, do dia
pra noite, a dividir minhas tristezas, aprendo a compartilhar a felicidades,
resolvo tirar um pouco o peso do mundo no ombro e seguro sua mão? Como é que eu
não me irrito com seu calor nesse calor, ou com seu frio durante o frio? Como é
que a gente faz com esse amor tão louco que nos agarrou? A gente fica e vê no
que vai dar, a gente corre e tenta esquecer, a gente enfrenta junto ou finge
que nunca aconteceu? Mas aconteceu. Por ousadia sua, por ingenuidade minha, por
erro meu e por acertos que você nem faz ideia que cometeu.
Você me atropelou e tirou meu chão. Agora eu fico aqui:
perdida com você. Perdida em você. Perdida de mim e perdida de todas as minhas
certezas que tinha antes de você aparecer por aqui. Me arrumo pra festa ou te
assusto com minha despretensão de quem não quer te conquistar –já que já te
conquistou? –Te expulso da sala ou te convido pra jantar? Te deixo ficar ou
fujo eu mesma durante a madrugada, mesmo estando em minha casa?
Faço o que com isso tudo que você causou? Você, do outro
lado, faz o que com tudo o que te fiz sentir sem ter a menor pretensão de ter
te feito sentir?
Eu não te convidei a entrar e você não pediu licença pra
chegar. Não tirou os sapatos. Não passou sua roupa. Não penteou o cabelo. Não verificou
se estava combinando. Nem arrumou essas cordas aí da sua blusa milimetricamente
do jeito que eu gosto. Não trouxe flores nem vinhos nem declarações nem cartas
nem chocolate nem poemas nem aquele eu-te-amo cuspido, pronto, decorado em
frente ao espelho –e mesmo assim me amou –Você não pediu pra sentar, não teve
medo de abrir a geladeira, colocar os pés pro alto, encostar a cabeça nas mãos
e dar um sorriso de quem sempre esteve ali, bem ali, no meio da minha vida, no
melhor lugar do sofá, comandando o ritmo do meu coração. Você não chegou; você me
inundou, se esparramou, me amarrou.
Me roubou de mim. Agora existe muito de nós no que só
pertencia a mim.
E aí, o que mais restou a fazer, além de me deixar ser
levada por você –logo você, que não pediu licença nem desculpa por ter chegado
sem avisar, logo você que, eu nem sei, se queria me levar?
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