sábado, 8 de fevereiro de 2014

Vermelho Sangue




Ela abriu os olhos, confusa. A luz da rua entrava pela janela, a cortina mal fechada, a noite de lua cheia. Quantas horas eram? Ainda estava com sono. Pensou em dormir. Mas ele estava sentado na cama, segurando um globo de neve, presente brega que pediu para uma amiga trazer. Ele olhava concentrado. Então girou a cabeça e sorriu.

-Te acordei?

Ela negou, sonolenta de mais para falar algo. Ele colocou o globo de neve na cômada, o relógio digital da cor vermelha –vermelhos sangue, ela se lembrou dele lhe dizendo quando compraram numa feira qualquer por quase de graça –marcava quatro e quinze. Da manhã.

Ela estava com sono.

A luz da rua não a deixava voltar a dormir.

-Não pode fechar a cortina?

-Acho que vou largar a psicologia –ele disse, esquentando as mãos na xícara que só agora ela enxergou

-Está com insônia outra vez?

-Não. Não sei. Talvez. Não tentei dormir para saber.

-Tenho alguns remédios aqui.

-Não, não quero dormir.

Ela assentiu, os olhos pesados. Fechou por dois segundos.

-Ouviu o que disse?

-Desculpe?

-Vou largar a psicologia –suspirou

-Ah. Por que? Achei que você gostasse do que fazia.

-E gosto.

-Não entendi. Você estudou seis anos para que? Para largar?

-É, eu sei. Louco não?

-Eu sempre disse isso. O que há?


Ele não a deixaria dormir até que terminasse o assunto, era sempre assim. Melhor faze-lo falar e acabar logo com isso.

-É como.. como se estudar sobre as pessoas me fizesse ver coisas que não veria, se fosse, sei lá, um engenheiro.

-O que quer dizer?

-É que as pessoas... as pessoas são como um rio, entende?


Ela negou.

Não entendia. Nem sabia se queria.

-Um rio, cheio de canais de afluentes que nos nutre. Alguns poluídos, outros límpidos como a nascente. Esse rio segue uma linha, nem sempre reta, que passa por montanhas, abismos, pedregulhos... Está me acompanhando? Pois então. Durante esse percurso o rio às vezes se mostra como é, mas na maior parte do caminho ele é escuro, escondido, perigoso.

-Onde quer chegar? –disse impaciente

-A psicologia serve para isso, entende? Para conhecer a parte do rio escondida em cada um de nós. E é aí que mora a questão, percebe?

-Não –se remexeu inquieta

-E que... bem, há rios que seria muito melhor não conhecer o que eles escondem.

-Estamos falando de pessoas ou de rios? –se sentou

-De rios. E de pessoas.

-Certo.


Ele estendeu a caneca para ela.

-Desculpe, só tenho leite em pó, sei que não gosta, mas... –deu de ombros –Você sabe que é a minha especialidade em termos de café.

-Latte. Meu preferido. Havia tempo que não fazia.

-Pois é.

-Pena que e leite em pó –fez uma careta, estava amargo –Continue.

-Desculpe. Onde estava mesmo?

-Na parte escondida do rio.

-Ah, sim. É claro –coçou as têmporas –Desculpe.

-Tudo bem.

-Então... há rios que nascem claros e límpidos, cheio de peixes vivos. As pessoas ficam perto e nadam por ali. Tudo muito puro, entende? Só que como aumento do rio, recebendo água de tantos afluentes diferentes, a água fica suja, sabe? Suja mesmo. E sobe montanha, desce montanha... passa por pedras e lamaçais... Ele começa a ficar barrento, pesado, e aí no final do percurso ele está tão escuro e sujo, que cheira podre, ninguém consegue viver nele.


Ele se levantou. A luz o iluminou a fazendo tremer, ele estava tenebroso, sombrio. De repente, ela queria acabar logo com aquele assunto, voltar para a paz de seu sono...

-E aí, Clarissa, você olha pro final tão sujo que não consegue mais ver a nascente limpa. Entendeu?

-Acho que sim.


Seu estômago contraiu. Ela parou de beber.

-As pessoas são assim, sabe? Não todas, algumas conseguem manter a essência que tem na nascente... Mas não sei, Clarissa, algumas se perdem no caminho. Prefiro acreditar que não é por maldade ou falta de caráter... Ainda acredito na boa fé das pessoas, sabe? Mas acho que é tanta informação e dores, e cicatrizes, e decepções, e mágoas, e sangue... Eu não sei, elas ficam sujas no final, entende? Chega a dar nojo. Vontade de por tudo pra fora.

Ela respirou com dificuldade, seu estômago doía. Queria vomitar, mas não conseguia. Também não conseguia falar. Olhou no relógio. Não via as horas. Só a cor vermelha. Vermelho sangue. Desesperou-se. Voltou a olhar para ele.

Ele não a olhou. Tirou um cigarro da bolsa. Acendeu. Tragou. Soltou a fumaça.

-E esse é o ruim da psicologia, entende? Porque você percebe essas coisas. Coisas que engenheiros, médicos, jornalistas, vendedores, não percebem. E aí você fica desesperado, Clarissa, porque você tenta despoluir o rio. Mas é sujeira de mais. Esqueleto de mais. Fedor de mais. E não para de chegar mais coisas mortas. E não adianta. –suspirou coçando o cabelo, desolado –Não adianta.

-Socorro... –ela balbuciou

-E aí, Clarissa –ele se sentou ao lado dela –só te restam duas opções: ou você abandona a psicologia, ou se livra dessa pessoa. Mas, na verdade, não adianta abandonar a psicologia. Porque você estudou, você sabe que mesmo se não quiser, vai acabar descobrindo o final do rio.


Ela deixou a caneca cair. Bateu no chão. Estraçalhou-se. Tentou segurar em algo, tentou respirar. O globo de neve caiu, o relógio também. Ele ficou ali, a olhando. Como uma última nota percebeu que o que iluminava seu rosto sóbrio não era a luz, era a lua.

Ele deu um sorriso triste, aproximou o rosto, beijou seus lábios.

-Desculpe, foi pro seu bem.


Ele estava sombrio, os olhos negros, e de uma maneira assustadora, mais bonito do que ela jamais vira.

Os olhos dela brilharam, uma última vez.

-Um dia, vai me agradecer.

Ele se levantou. O relógio ainda funcionava, marcava cinco da manhã. Ele deixou o cigarro cair. Pisou. Apagou o fogo. Pisou no relógio. Calmo. Vendo Clarissa morrer. A cor de sangue do relógio apagou. Só restou pedaços vermelhos no chão. Pareceu satisfeito. Sorriu. Deu as costas e abriu a porta.

Estava livre.

Caminhou calmamente pela rua iluminada pela lua.

Olhou pro céu.

Estava vermelho sangue, sua cor preferida.


Este texto foi publicado no livro Uma Dose de Café, pela Editora Multifoco, em 2012. Se quiserem ler mais textos nessa temática, pode comprar o livro clicando aqui. Qualquer cópia parcial ou completa deste conto em qualquer outro site, está amparado no contrato assinado com a editora, sob pena de plágio, viu?!


Um comentário:

  1. Sabe o quanto amo seus textos assim né?
    Vermelho sangue está com certeza entre os meus prefidos.
    Tem gente que tenta escrever, tem gente que escreve bem e tem você humilhando na escrita ♥

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Comentários

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