quarta-feira, 6 de junho de 2012

Silêncio

Como é que a gente faz pra viver com uma pessoa com quem temos pavor de ficar em silêncio?
Silêncio dá medo.
Karine Rosa

O café coava sobre a pia. A geladeira deu um solavanco ligando. A mulher, na cozinha, lavava as vasilhas do almoço. A água descia. Ela esfregava. Cantarolava uma música qualquer, sem ritmo e com as letras fora de ordem.

Fora isso, silêncio.

Na sala, o homem mexia nas ferramentas, tentava consertar a antena pro jogo.  Subia no telhado. Seus passos ecoando do teto. Ajeitava a antena. Descia para ver como ficou. Suspirava. Não vai dar defeito logo hoje, pensava, e subia de novo.

Fora isso, silêncio.

Na rua, o cachorro latia. O menino soltava pipa. Olha a rede elétrica, alguém gritou. Um carro passou. Fogo estouravam no céu. Dia de algum santo? A mulher, calada, tentava se lembrar. O homem sorria. Preparação de jogo, só isso.

Fora isso, silêncio.

Os passos da mulher se arrastavam no chinelo remendado. Secou a pia. Fechou o fogão. Se deitou para descansar um pouco. A cama range. O marido esqueceu-se de apertar os parafusos. O cachorro continua a latir lá fora.

Fora isso, silêncio.

O homem desceu de novo da laje. A televisão, finalmente, ficara boa. Parece tela de cinema, quis chamar a esposa pra ver. Não chama. Ela está descansando. Guardou as ferramentas na caixa. Agora só esperar pela hora do jogo.

Fora isso, silêncio.

As amigas diziam que a mulher tinha sorte. Por ter um marido tão silencioso, por não saber o que era uma discussão. Ela sorria, calada, como sempre. O pessoal dizia que o marido havia ganho na loteria, achara uma mulher que não falava alto nem questionava tudo o que ele queria fazer. Os dois deveriam levantar as mãos pro céu e agradecer.

Não agradeciam. Só eles sabiam o custo daquele silêncio. As palavras que não ouviam. As reclamações engolidas. As perguntas não feitas. Os carinhos não trocados. Eles sabiam que mais difícil do que brigar era saber o que o silêncio significava. Mais difícil do que aturar as discussões era aguentar os silêncios que preenchiam a casa. Nem sempre, pensava ele, o silêncio é bom. Nem sempre, suspirava ela, o silêncio traz paz.

Ele guardou a caixa de ferramenta, lavou as mãos, se preparou pro jogo. Ela se levantou, foi fazer a pipoca pra ele. Lá fora o cachorro latia, o menino soltava pipa, os fogos estouravam. Dia de algum santo, mas qual? Pensava ela. O homem sorria, abriu uma cerveja, ia ser um jogão.

Fora isso, silêncio.

"Eles se amam, seu silêncio é cumplicidade ou tédio?  Querem ficar longes ou gostam de estar perto?"
Lya Luft

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Compartilhe