Ela deixou as roupas caírem no chão como um dia deixaram que
ela caísse e entrou no banho. A água
quente escorreu pela pele fria deixando marcas vermelhas por vários pontos. Ela
não se importou. Talvez, essas marcas, fizessem com que as cicatrizes colecionadas
naqueles anos formassem um novo desenho. Quem sabe até uma flor. Quem sabe ela
não conseguisse, então, tirar alguma coisa boa se conseguisse se livrar de uma
pele machucada, como nos filmes, nos livros ou seu psiquiatra disse enquanto
lhe receitava mais doses de Rivotril acompanhadas de lições meia-boca de
desapego e amor próprio que ela poderia ler muito bem sozinha em um livro de
autoajuda ao invés de gastar tanto dinheiro com aquelas sessões.
Disseram que ela era do tipo que não sabia amar. A vizinha,
o ex-namorado, a mãe e até o gato de estimação que fugiu desesperado na primeira oportunidade e porta
deixada aberta. Gatos eram traiçoeiros. E ela devia ter se lembrado disso ao
colocar os olhos naquele tênis azul que combinava com aquele par de olhos
astutos que um dia ela achou que –vejam só –combinavam com ela. Ingênua, idiota
e infeliz. Ele era um gato e gatos são piores que os cachorros (afinal, dos
cachorros, a gente sempre sabe o que podemos esperar). E foi isso, assim, que
ela chegou aqui e no consultório do psiquiatra com lições meia-boca, que ela
foi diagnosticada como uma mulher que ama demais, que na verdade era só um
jeito educado de dizer que ela era uma louca varrida, descontrolada e maluca de
pedra mesmo (as redundâncias para deixar claro do que ela era capaz de fazer).
Cuidado, cão bravo, dizia a placa da casa da frente. Cuidado, mulher que ama
demais, estava pendurado no pescoço dela.
A água não lavou suas marcas, seus traumas, seus medos. As
terapias não funcionavam e o Rivotril não melhorava. Todos esses problemas
porque um dia catalogaram o amor e a definição dada não se enquadrava no jeito
que ela tinha de amar. Amava errado –como se houvesse alguém que soubesse como
era amar certo –Amava demais –porque num mundo de menos se entregar era loucura
e deveria ser tratado às pressas e com receitas tarja preta. Perdeu o namorado, a família, o trabalho e a
sanidade. Ganhou remédios controlados, olheiras profundas, e coração partido
que Rivotril algum curava.
Saiu do banho. Vestiu a mesma roupa com gesto mecânico.
Olhos profundos e pele vermelha. Do lado de fora, alguém batia na porta.
Esmurrava. Gritava seu nome. Implorava pra que ela abrisse. Se desesperava. Ela
deu de ombros, como se não escutasse, como se não se importasse. Foi até a cozinha. Se serviu de uma boa dose
de café. Fazia frio –não no ambiente, mas dentro dela. Foi até a sala e ligou a
tv num canal qualquer. Encheu a mão com o remédio receitado. Os murros na porta
aumentaram. Ela deu um suspiro. Olhos vagos, coração vazio, boca seca e
ausência de vontade de viver. Logo ela, tão intensa que um dia foi rotulada como
perigosa. Sem terapias, sem remédios, lições meia-boca ou livro de autoajuda.
Para deixar de amar demais ela deveria parar de sentir. Para deixar de sentir,
só parando de respirar.
Ela ouviu os berros, os murros, o desespero do gato que não miava
e que havia fugido na primeira oportunidade de porta aberta voltar e tentar
salva-la. Deu um sorriso amargo. Agora a porta estava trancada para sempre, ela
nunca cometia os mesmos erros. A mulher que amava demais fechou os olhos.
E, então, não ouviu mais nada.
Ps: Esse texto não tem compromisso com a realidade nem quer expressar a minha opinião sobre o assunto. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência da minha mente criativa.
Que texto... tocante! Escrevendo cada dia melhor Nanda, cada texto mais lindo que o outro. <3
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