Esse texto foi escrito inspirado na música Folhetim, do Chico Buarque
Para ouvir enquanto lê, clique aqui
Se acaso a quiseres, chega cedo e marca
a hora, que talvez você conheça o relógio verde-neon que tem sobre seu
criado-mudo num quarto imundo que ela imunda de seus cheiros, dores, odores e
flores num apartamento sem número, endereço e morador de verdade, mas que tem
uma dessas camas que a gente quer ficar pra sempre mesmo sabendo que
"para-sempres" não cabem nesta história.
O relógio verde neon eu dei a ela
depois que voltei de uma dessas viagens chatas de trabalho, passava por uma
banquinha qualquer e achei tão brega e luminoso e inebriante como ela que
comprei e entreguei bem assim, nas suas mãos, como também tinha entregado meu
coração.
Mas ela cuida bem melhor do relógio,
que marca as horas dos dias que ela passou comigo e não passa mais.
Se a quiseres, chega com carinho,
devagarzinho, ofereça um drink enquanto ela balança as pernas sedutoras
sentadas no balcão de um bar sem estrela enquanto bebe uma bebida muito ruim,
mas que ela adora. Ela gosta de coisas ruins e isso pode incluir mais uma noite
fracassada nos braços de um cara qualquer que ela não quer saber o nome nem o
telefone pra ligar no dia seguinte. Ela gosta de blues amargos, cafés
requentados, sorrisos fracos e de despedidas na calada da noite pra não
precisar ver seu olhar de
que-foi-que-eu-fiz-pra-você-não-querer-ficar-só-mais-um-pouquinho. Ela não
nasceu pra romance, camarada. Se a quiseres, a queira sem querer nenhum
compromisso para o dia seguinte. Que o dia seguinte é dela e de outro
possivelmente que ela tromba pelo caminho e carrega pela sua mão, em rotas que
ninguém mais escreve sobre o lençol de sua cama.
Mas não caia nos
sussurros-gemidos-ai-meu-deus-como-você-é-gostoso que ela vai te dizer enquanto
está sobre ela, nem nos ai-meu-deus-como-você-é-gostoso quando ela estiver
acima de você. Quando ela te prender com aquelas mãos, com as unhas ferinas
pintadas de vermelho, não deixe que ela te segure muito forte ou te fira
fisicamente. Já lhe será duro o bastante não saber lidar com as marcas que
ficarão em seu coração.
Se a quiseres, não a coloque num desses
pedestais porque de santa ela pouco tem, mas não a condene lá pro inferno, tá
bem? Que a pureza dela tá naquele olhar doce de menina que ela esconde com
sorrisos selvagens de batom vermelho e maquiagem de femme fatale. E se tu se
aventurar por esses lados nunca mais vai achar saída alguma pra sua vida.
Que ela te fará todas suas vontades e se
entregará de verdade como poucas estão dispostas a se entregar; que ela fará
com que você acredite por aqueles instantes-minutos-horas de prazer, seja lá
quanto durar, que você a possui; e depois sairá sem
despedidas-perdões-desculpas-acusações no meio da noite levando de você o que
você nem mesmo sabia ter – a vontade de amá-la – e tirando de tu a sorte de
poder amá-la. Ninguém a possui – nem a sorte, nem ela. E aproveite a chance com
champanhe, romance, sexo, drogas, rock’n’roll, por cima ou por baixo, aqui ou
lá, no corredor ou na casa dela, sem olhar pro relógio verde-neon que também
marca suas horas com ela como marca as minhas horas sem ela. Que na manhã
seguinte, eu odeio te falar, você será a página virada descartada do folhetim.
Tal igual o relógio brega sobre o criado mudo e a mim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários