domingo, 6 de julho de 2014

Se A Quiseres: Cuidado

Esse texto foi escrito inspirado na música Folhetim, do Chico Buarque
Para ouvir enquanto lê, clique aqui



Se acaso a quiseres, chega cedo e marca a hora, que talvez você conheça o relógio verde-neon que tem sobre seu criado-mudo num quarto imundo que ela imunda de seus cheiros, dores, odores e flores num apartamento sem número, endereço e morador de verdade, mas que tem uma dessas camas que a gente quer ficar pra sempre mesmo sabendo que "para-sempres" não cabem nesta história.  

O relógio verde neon eu dei a ela depois que voltei de uma dessas viagens chatas de trabalho, passava por uma banquinha qualquer e achei tão brega e luminoso e inebriante como ela que comprei e entreguei bem assim, nas suas mãos, como também tinha entregado meu coração.  

Mas ela cuida bem melhor do relógio, que marca as horas dos dias que ela passou comigo e não passa mais.

Se a quiseres, chega com carinho, devagarzinho, ofereça um drink enquanto ela balança as pernas sedutoras sentadas no balcão de um bar sem estrela enquanto bebe uma bebida muito ruim, mas que ela adora. Ela gosta de coisas ruins e isso pode incluir mais uma noite fracassada nos braços de um cara qualquer que ela não quer saber o nome nem o telefone pra ligar no dia seguinte. Ela gosta de blues amargos, cafés requentados, sorrisos fracos e de despedidas na calada da noite pra não precisar ver seu olhar de que-foi-que-eu-fiz-pra-você-não-querer-ficar-só-mais-um-pouquinho. Ela não nasceu pra romance, camarada. Se a quiseres, a queira sem querer nenhum compromisso para o dia seguinte. Que o dia seguinte é dela e de outro possivelmente que ela tromba pelo caminho e carrega pela sua mão, em rotas que ninguém mais escreve sobre o lençol de sua cama.

Mas não caia nos sussurros-gemidos-ai-meu-deus-como-você-é-gostoso que ela vai te dizer enquanto está sobre ela, nem nos ai-meu-deus-como-você-é-gostoso quando ela estiver acima de você. Quando ela te prender com aquelas mãos, com as unhas ferinas pintadas de vermelho, não deixe que ela te segure muito forte ou te fira fisicamente. Já lhe será duro o bastante não saber lidar com as marcas que ficarão em seu coração. 

Se a quiseres, não a coloque num desses pedestais porque de santa ela pouco tem, mas não a condene lá pro inferno, tá bem? Que a pureza dela tá naquele olhar doce de menina que ela esconde com sorrisos selvagens de batom vermelho e maquiagem de femme fatale. E se tu se aventurar por esses lados nunca mais vai achar saída alguma pra sua vida. 

Que ela te fará todas suas vontades e se entregará de verdade como poucas estão dispostas a se entregar; que ela fará com que você acredite por aqueles instantes-minutos-horas de prazer, seja lá quanto durar, que você a possui; e depois sairá sem despedidas-perdões-desculpas-acusações no meio da noite levando de você o que você nem mesmo sabia ter – a vontade de amá-la – e tirando de tu a sorte de poder amá-la. Ninguém a possui – nem a sorte, nem ela. E aproveite a chance com champanhe, romance, sexo, drogas, rock’n’roll, por cima ou por baixo, aqui ou lá, no corredor ou na casa dela, sem olhar pro relógio verde-neon que também marca suas horas com ela como marca as minhas horas sem ela. Que na manhã seguinte, eu odeio te falar, você será a página virada descartada do folhetim. Tal igual o relógio brega sobre o criado mudo e a mim.



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