domingo, 26 de abril de 2015

Cirurgia de você


É véspera da cirurgia e eu tenho uma consulta com o anestesista. Ele me conta que vai ser geral, o que significa que um tubo vai passar pela minha garganta e eu tenho que abrir a boca e fazer ‘AAAH’ pra ele examinar. Isso por algum motivo me assusta mais do que ser cortada com um bisturi. Mas a dica é: pensa em algo bom logo antes de adormecer, que é com esse pensamento que você vai acordar. O pensamento: você.

Dez dias depois, tudo indo bem com a recuperação quando de repente um dos pontos resolveu abrir. Teve sangue, e teve muita dor. Daquelas que eu berrava a procura da sua mão pra fazer passar, só que dessa vez não tinha mão e nada passou. Pelo telefone, o consolo da médica: respira fundo e pensa em algo bom, amanhã cedinho vou te ver. Não dormi nada e nem respirar fundo sem me sentir rasgando dava muito certo, mas o pensamento que acalmava ainda era você.

Quinze dias de prisão domiciliar sem muita chance de sair e encontrar o tal do amor a primeira vista. Ou, como de costume, só mais um pra quem eu vou me arrepender de ter dado o celular no dia seguinte. Mas os minutos nesse quarto passam tão rápido quanto na festa, e quatro e cinquenta da manhã eu me viro como não deveria ter virado e acordo com dor. Me receitam dipirona e alguns tantos antibióticos, mas dessa vez a dor não é física. Foi só a ferida que você abriu e ainda não estancou fazendo sua habitual aparição no meio de alguma madrugada qualquer.

Que é pra me fazer lembrar de algo que na verdade eu nunca esqueci. De como eu tinha tanta urgência de você que não aguentávamos esperar chegar no quarto então a gente se amava na área de serviço ou no cômodo da empregada mesmo. Da minha súbita alergia na hora de ir embora e ter que me separar de você. Das inúmeras vezes que ouvi conselhos dizendo que você não valia nada mas no fundo eu sabia que era justamente por isso que você prestava pra mim. Eu, que também nunca vali muita coisa, gosto de poder sofrer por você. E por isso ainda é difícil fingir que sinto raiva. Ou que essas lágrimas são só ondas de saudade quando na verdade são tsunamis nos meus olhos.

É que eu costumava pensar que você, com nossas manias e jeitos tão nossos, segurava a lua. E aquele dia quando você virou de costas e se afastou o céu despencou junto. Ficou só o eco do seu adeus e soprou um vento gelado que sussurrava no meu ouvido que eu estava perdendo o amor da minha vida. E se nunca mais for amor? E se nós dois formos o máximo que eu posso ter? Eu não consigo imaginar sentindo por outra pessoa o que senti com você.

Depois de você a vida estagnou. E acho que isso combina com o sangue literalmente estagnado aqui no meu peito. Sentir sua falta não é mais questão de lugar, virou um estado intransferível e imutável. Tá presente em cada filme mal iluminado que minha mente dirige sobre nossa trajetória. Tá assombrando o corredor da minha casa e deformando o espaço na minha cama. Tá fechando minha garganta seca com o tanto de coisa que eu engoli porque queria te falar mas não pude, e assim o tubo pra anestesia não tem como passar. Não passa, e dói. E eu sinto. Sinto provocando espasmos, insônia, náuseas e outros efeitos colaterais de quando mais uma lembrança inevitavelmente vem à tona e me acerta em cheio.

Talvez seja por isso que eu esteja ficando tão vazia.

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