Então, eu poderia começar essa história como se começa todas
as outras. Elogiando suas qualidades e fingindo que não havia ali nenhum
defeito. Quase como se ele fosse um deus. Parece cruel criticar pessoas que já morreram
porque, por si só, a morte já é cruel. Mas essa não é uma história como as
outras. É apenas uma história. Qualquer. De um cara qualquer. Então, ele era
apenas um cara, nem bonito, nem feio, nem gordo, nem magro, nem inteligente, nem
burro, nem. Mais um de milhares que foram rotulados como “só mais um cara” sem
sal, sem um grande futuro e sem mesmo um grande passado que pudesse virar
alguma história. Dizem que, na vida, ou se morre como herói ou vive-se o
bastante para se tornar vilão. Ele com certeza não havia vivido o bastante para
ser vilão de nada. Mas também não era, nem de longe, considerado um herói.
Trintaepoucos. Carregava o mundo nas costas, a cabeça nas
nuvens, mas mantinha os pés no chão porque a vida nunca lhe foi fácil. Sonhava
em ser o cara, alguém notado e notável, conhecer o mundo, ter uma casa própria e
um carro na garagem. Na realidade: trabalhava de segunda a sábado e ainda fazia
uns extras para desafogar as contas, tinha dois filhos e uma mulher boa –mas não
bonita –e terminava todos os meses tendo que fazer milagre para não entrar em
mais outra dívida. Pegava dois ônibus lotado e ainda andava um bom pedaço de
chão para chegar ao serviço. Fazia o mesmo caminho de volta. Tinha uns
olhos-verdes-tristes e um sorriso-amarelo-sofrido. A vida, às vezes, é mais
cruel do que a morte. Destruía os sonhos e fazia uma realidade preta e branca
sem flores, mas cheia de espinho no caminho.
E se fosse uma história como todas as outras, eu estaria dizendo que ele beijou sua mulher como se fosse a
última, a única e a mais bela. E brincou com seus filhos como se eles fossem
pródigos. E comeu sua refeição preferida como se fosse sábado, como se fosse um
príncipe. E foi para o trabalho feliz como se ouvisse música. E tropeçou pelo
caminho como se estivesse dançando nas nuvens. E riu como se ouvisse uma piada.
E então caiu no meio dos carros como se não tivesse medo.
Mas essa história não era como todas as outras e a realidade
nunca foi um conto de fadas. Ele apenas beijou sua mulher porque lhe era a
única opção. Brincou com seus filhos como se não tivesse escolhas. E comeu a
refeição que o bolso poderia pagar sem sentir gosto porque não tinha tempo para
perder. E, por falta de tempo, foi carrancudo e correndo como se fosse um
desesperado. E aí tropeçou nos próprios passos como se fosse um bêbado. Caiu
como se não tivesse sonhos para realizar, dívidas a pagar e uma família inteira
para cuidar.
E pode parecer cruel – porque verdades, assim como a vida e a
morte, podem ser cruéis –com ele, com a família e com quem passava. Porém
aquele cara, que era apenas mais um cara com sonhos inalcançáveis e realidade
intragável, só virou uma história, porque morreu na contramão atrapalhando todo o
tráfego.
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contra-mão atrapalhando o tráfego...
Construção -Chico Buarque
Ps: Esse texto não tem compromisso com a realidade nem quer expressar a minha opinião sobre o assunto. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência da minha mente criativa.
A pessoa realmente tem o dom. :) Faltam palavras diante de textos como os que vc escreve.
ResponderExcluirMto bom!
AI SUA FOFA
ExcluirPerfeição gente!
ResponderExcluir<3
ExcluirFaz pouquinho tempo que conheço o seu blog, mas já sou uma apaixonada por suas palavras.
ResponderExcluirhttp://doisquintos.blogspot.com.br/
aiiii que linda <3
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirTextos realmentes bons são aqueles que cativam e inspiram, confesso que ultimamente não tenho tido muita paciência para vários textos que encontro por aì, textos que falam de amor ou melhor sobre todas as desilusão do amor e toda aquela pós-depressão, o fato é que a vida é tão bela e rica que seria um crime não encher as páginas com textos que te mostram um novo caminha e te ajudam a perceber o quão incrível tudo pode ser, e é exatamente isso que eu venho encontrando em todos os seus textos, parabéns!
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