quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Cúmplice


Eu escutava sua voz aqui do meu apartamento. Aquele tipo estridente, porém feliz? Então, pelo modo como falava eu sabia que ela estava sorrindo. E por mais cansado que estivesse eu sempre prestava atenção na voz que vinha do outro apartamento. Era uma voz diferente das que já haviam passado por ali. 

O morador da casa ao lado era de poucas palavras. O pouco que eu sabia era que trabalhava. Pelas roupas eu diria que advogado. Saia tão cedo quanto voltava. Durante a semana, pelo menos, era assim, mas aos fins de semana, ah os fins de semana, o que não faltava ao apartamento ao lado era movimento. Movimento feminino, se é que me entende. Cheguei até a invejar a vida sexual ativa daquele rapaz, confesso! 


Como eu sei de tudo isso? Oras, porque vizinho é assexuado, você sempre acaba sabendo a vida do outro, escutando umas conversas em um tom mais alto, percebendo os horários em que a porta bate. E comigo não era diferente. 

Mas voltando a menina de voz feliz. Parecia entusiasmada quando contava seus casos com as amigas da faculdade para ele. A primeira vez que a escutei já estranhei. Conversando?! Ele não era disso. Pensei logo que era uma irmã. Mas logo vieram os gemidos, tão escandalosos quanto sua voz estridente e sua risada, e então a conclusão: “Não, não é irmã. Ou espero que não seja.”. 

E comecei a escutar sua voz com certa frequência. Acho que primeiro uma vez por semana, depois duas, três e pelos próximos meses ela era a trilha sonora da minha noite.  Pelos assuntos, eu daria vinte anos. Ele algumas vezes falava, em outras apenas ria, mas ela nunca se cansava de tagarelar. Uma vez pensei em reclamar, eram duas da manhã e a garota não calava a boca. Senti dó dele, pensei que iria fazer um favor livrando-o daquele falatório, mas conclui em seguida: “são só vinte anos, deixe-a ser feliz.”. 

Depois de meses, finalmente encontrei com a dona da voz no elevador, acompanhada do homem de poucas palavras, claro. Ao contrário da voz ela era linda, bem menina mulher. Era baixinha e usava roupas um pouco sensuais. O namorado percebeu que eu a admirava e aproximou seu corpo do dela, como se marcasse território. Ela não percebeu e começou a tagarelar, falou do clima lá fora, do ar do elevador, do tempo maluco de São Paulo, meu deus como falou. Ainda bem que fomos apenas do subsolo até o quinto andar, senão ela teria falado até do aquecimento global. Notou todo tipo de clima, menos o de ciúmes que se instalava naqueles poucos metros quadrados. Desceu do elevador saltitando. Eu ri. “Realmente uma menina mulher”. Me deu tchau sorrindo e até me convidou para tomar uma cerveja com eles, o namorado a encarou, eu percebi a situação constrangedora e neguei. Ele me deu um tchau seco, como costumava ser. 

Depois que bati minha porta e eles a deles, escutei pela primeira vez ele falar com ela em um tom mais alto, mais áspero, tinha jeito de ciúmes. Ciúmes de mim, notem bem. Ele gritou um pouco, ela também e de repente algo tinha ido de encontro a parede. Pelo barulho. Vidro. Ela se assustou.  Notei pelo modo como a frase que falava ficou pela metade. Silêncio. Um choro baixinho. Dormi. 

Passou uma semana e novamente a mesma sequencia. Gritos. Barulho assustador. Choro baixinho. Isso aconteceu por algumas semanas seguidas. Sempre com as mesmas falas deles (que prefiro não repetir por não fazerem parte do meu vocabulário, só posso resumir que ele não a chamou de santa). Sempre as mesmas falas dela. Ele tinha ciúmes, achava que ela provocava. Ela era uma menina, não notava, era naturalmente assim. Mas ele estava cego. Depois de um tempo as brigas se tornaram mais frequentes. Tão iguais que passei a não notar.

Porém uma delas me pareceu diferente. Ele estava mais rude nas palavras, parecia descontrolado. Estava diferente.  Ela começou a chorar antes do barulho assustador. Notei pelo tom de sua voz. Por que ela chorava? Logo ela me respondeu. “Me Solta, você está me machucando.”. Ele não pareceu atender. Ela chorou mais alto. Pediu mais uma vez. Nada. Barulho assustador. Mas agora não parecia vidro. Parecia algo diferente. Outra vez. Caramba, que isso?. “Para amor, por favor, você está me machucando.”. Não quis acreditar, não podia ser. Era covardia ele dirigir a mão a ela. Não pode ser. Ela gritou. Silêncio. Entendi que ele havia parado. Tive vontade de entrar e pedir que ele batesse em mim. Mas preferi não me meter. Sabe como é né? Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher.

A voz dela no dia seguinte já não era mais a mesma. Pensei que ela iria embora, mas por algum motivo ela resolveu ficar. Acho que como eu, ela pensou que ele jamais faria isso outra vez. Mas estávamos enganados. A próxima vez chegou. E a próxima. E a próxima. E os barulhos, talvez socos, talvez chutes, não sei, vinham cada vez mais alto e por mais tempo. Eu queria interferir, mas não me via no direito. 

(Antes tivesse feito.)

Em um dia qualquer, cheguei em casa cansado. Adormeci com a roupa que estava. Acordei por volta de três da manhã com a mesma sessão. Pensei que não aguentava mais. Como ela aguentava? Não sei. Mas sei que ele pareceu não aguentar mais também. O silêncio que seguia tudo dessa vez foi menor. O choro dela era mais alto e implorava que ele não fizesse nada. Estranhei aquela parte. Prestei atenção no que seguiria e nunca mais esquecerei. O barulho seco que deixou a frase dela pela metade. Como na primeira discussão. Um segundo barulho, tão seco quanto. 

Silêncio. 

Mas agora não parecia nada com a primeira. E eu estava certo. Os silêncio dos dois agora era pra sempre. 

Ele não soube cuidar daquela menina que estampou a capa do jornal no dia seguinte. O sorriso era mesmo, inocente, que recebi no elevador. Os sonhos resumidos em alguns parágrafos. A confirmação das minhas suspeitas. Ela tinha só 20 anos. 

O caso que chocou o bairro nobre como nenhum outro, mas não chocou ninguém como me marcou. Ela estava ali há alguns metros de mim. Eu testemunhei aquele sorriso se apagar aos poucos. Eu deixei. Eu fui cúmplice daquele doente. Deixei que ele calasse a menina mulher. Testemunhei o momento que ela deixou de tagarelar como um dia eu desejei tão inocente quanto ela era. 

Aos 20 anos.  Apenas 20 anos.




3 comentários:

  1. Poxa, esse é um ótimo exemplo de um conto muito bem escrito e muito bem construído como um todo. Não é chato de ler em nenhuma parte, e no fim eu sinto que ganhei algo em troca do tempo de leitura.
    Obrigado mesmo.

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Comentários

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