Sobre A Parte Que Sempre Fica De Quem Parte

Passado é uma lição que fica é uma dessas frases de efeito que a gente sempre diz pras outras pessoas quando elas começam a reclamar sobre seus erros e seus arrependimentos pra gente. Uma dessas frases que a gente cola na testa, na parede do quarto, no coração e na palma da mão. Que a gente faz questão de lembrar a todo momento quando resolvemos dar uma olhadinha pra trás e conferir, mesmo que inconsciente, o que abandonou ao seguir um novo caminho. As pessoas que te machucaram, continuam lá no mesmo lugar. As pessoas que te abandonaram, montaram uma casa permanente num pretérito que, em sua maioria, não vai voltar. Mesmo assim a gente confere, olha no relógio, entra na curva errada pra ver se bate com o cara que destruiu seu coração, a amiga traíra, a merda daquele babaca que você se entregou e te largou sem nem pensar duas vezes, só pra mostrar a eles como estamos melhores. E nem sempre estamos. Pior, a gente sempre olha pra pessoa que está hoje ao nosso lado e se pergunta: será que ela não vai cometer o mesmo erro? Me machucar do mesmo jeito? Me trair sem culpa ou remorso enquanto eu tô ralando ali na faculdade tentando ser alguém pra dar uma vida melhor pra ela? Incrivelmente, por mais que a gente saiba que as pessoas são diferentes e que o passado é coisa pra ficar, literalmente, integralmente, indubitavelmente no passado, a gente ainda assim se espelha nele para julgar nosso presente ou tentar prever o futuro.

A gente sabe –e nem precisa procurar no fundo pra saber –que quem segura a nossa mão hoje não tem nada a ver com nossas mágoas passadas. Mas a gente também sabe que as mágoas passadas são quase que eternas em nossa alma e que nos marca querendo ou não pro resto de nossas vidas. É difícil se livrar de uma queda sem nenhuma cicatriz feia esquecida num canto da gente. É como aquela marca no seu joelho que tu conquistou na infância. Hoje você nem sabe como ela surgiu, em qual queda de bicicleta ela apareceu, mas o tempo não fez com que ela sumisse. Pode ter enfraquecido, mas, se você olhar bem, continua lá.  Continua presente. Mesmo fazendo parte do seu passado.

O tempo não passa e talvez por isso o passado seja só uma ideia romântica de quem acha que nada dura para sempre. Dores não duram para sempre, mas a dor que um dia ela causou, dura. A gente sempre se lembra, não importa quantos anos passe, quem você conhece, se você se reconstruiu sozinha ou com a ajuda dos outros, de como seu coração foi quebrado nas outras vezes. A gente tem sempre um medo doentio de que a nova pessoa também o quebre da mesma forma, mesmo que ela seja tão diferente de quem você conheceu, mesmo que você mesmo não seja a mesma de anos atrás. O grande problema dos relacionamentos novos é lidar com os relacionamentos antigos. É saber olhar pra pessoa que tá ai, contigo, e diferencia-la de quem um dia esteve e abandonou. Não quer dizer que você não possa ser abandonado também –há sempre o risco disso, sabe? –Não quer dizer que você não será machucado de novo –a gente sempre é, mesmo quando conseguimos o final feliz –Não dá para prever o futuro por melhor que sejam suas hipóteses. Por mais que você seja dividido por a pessoa de antes e a pessoa de hoje, quem está contigo não tem culpa dos seus erros e, em tese, não deveria pagar pelas mágoas que nem foram causadas por ele (ou por ela). Em tese. Mas você sabe tão bem quanto eu que a neurose não é um bicho justo e que adora um descuido pra acampar moradia para sempre aí, dentro de você.

Não, o outro não tem culpa do que você viveu. E sei que você não o culpa diretamente, mas o afeta sim com as lições de seu passado. Assim como você é afetado pelas lições que ele aprendeu sem você. Entendam: antes de alguém chegar a sua vida, ele fez parte de outras vidas também; escreveu outras histórias, outros finais, cometeu outros erros e acertos. Os pontos que foram colocados encerraram dores ou amores. Não importa. Esse alguém só está aí hoje porque passou por coisas que o trouxeram pra rua em que vocês se encontraram –ou para a sala da faculdade, o corredor do supermercado ou na batida um pouco mais acelerada do seu coração que você jurava que não iria bater por mais ninguém. Ninguém pode dizer que se vocês tivessem se conhecido sem passado poderiam ser ou não mais felizes. Mas todo mundo sabe que se você quer ser feliz com essa pessoa precisa, sim, colocar uma pedra no passado de vocês dois. Por pior que tenha sido, você me entende? Recomeçar é dom para poucos –e já estou eu recitando O Teatro Mágico de novo. Mas é verdade: recomeçar é a arte de quem sabe fazer arte com as coisas que ficaram das partidas que enfrentou.

Passado não é lição que fica. É lição que marca. E a gente bem sabe disso. O que talvez você não saiba, e o que ninguém nunca te contou, é que é você que decide como vai marcar seu presente e faze-lo diferente. Porque, cara, chega aqui, deixa eu te contar um segredo, esse presente que você constrói já será passado amanhã de manhã, quando você acordar com ressaca por ter se entregado de mais ou, o que é mais triste, amado de menos.

Postado em 01/05/2014 em Endless Poem