quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Notícia de Jornal




Uns diriam que era amor. Os mais românticos, quero dizer. Davam assim um sorriso descrente como quem não acredita muito na história que está ouvindo, suspiravam meio que longe e falavam: o amor tem dessas coisas às vezes. Os mais céticos aos sentimentos chamariam de loucura. Porque quando uma coisa foge do controle só pode ser loucura mesmo, não é? E tem uns que ficam assim meio em cima do muro, meio espantados, meio abismados com a proporção que uma história pode tomar que dão de ombros e falam que é doença. Mas talvez, só talvez, amor, loucura e doença nem pode mesmo se separar assim, como se consegue separar a areia da água num experimento químico qualquer. Tá mais para uma solução homogênea, mesmo carregando um milhão de coisas juntas, impuras ou puras, pouco importa. Mais como... café.

O café é um líquido que tem mais de trezentas substâncias, e cada uma delas tem uma função de dar o cheiro, o tom, a cor, o gosto, diferente. Assim, feito café, é o amor. Umas doses a mais e ele fica insuportavelmente forte, que tá bile no estômago. Umas doses a menos e ele fica tão fraco que a gente não consegue sentir nada, nem o cheiro, nem o sabor. Se você erra no açúcar pode ser que fique tão amargo que te cause ânsia de vômito; assim também pode ocorrer com o excesso do açúcar que faz a gente torcer a boca e abandonar a xícara quase cheia. O amor é meio assim também. É uma alquimia de sentimentos que, se uma das substâncias estiver em quantidade errada, pode fazer com que todo o trabalho seja desperdiçado.

Aquele casal errou a mão. Não tô falando só dela que estampou a capa do jornal daquela manhã fria e insossa. Nem só dele que estampou as letras garrafais da manchete. Amor é feito de dois. Às vezes de três, ou quatro, mas nunca feito de um só. É que amor detesta a solidão, cês sabem, e quando um ama sozinho a coisa não anda – desanda e, por consequência, desama. Ela tinha um sorriso doce e ele um sorriso sinistro. Ela era doce e meiga e prestativa e ele... Quase sempre amargo, retraído, distante do mundo e avesso a qualquer manifestação de seus sentimentos. Um casal atípico de ficarem juntos. E como é bem típico do amor, eles ficaram.

Durou bastante, antes que queiram saber. No começo tudo foi rosa. Mas como toda rosa vem carregada de espinho, não tardou até aquela história que nunca teve muita chance de dar certo começar a machucar os envolvidos. Como eu disse, ela era prestativa. Talvez, de tanto, chegasse a ser ingênua. Ou talvez ela entendesse que estar sempre pronta a ajudar atraísse alguns caras meio estúpidos para cima dela. Ninguém sabe se ela realmente entendia a gravidade daquele traço da sua personalidade. A verdade mesmo é que ela nunca parou de sorrir e ajudar e fazer amigos em qualquer lugar por conta disso.

Ele que não gostava. Não gostava nem um pouco. E isso foi só aumentando com o passar dos meses. O tempo às vezes é cruel. Quanto mais o ponteiro maior roda mais os defeitos do outro podem ficar insuportável para gente. 

Começou de um jeito imperceptível, eu arrisco a dizer. Uns gritos aqui, umas crises de ciúme sem sentido acolá, um controle meio bobo do que ela fazia na internet ou no celular. O bichinho do ciúme parece inofensivo no primeiro momento, fica parecendo só manifestação de carinho, cuidado, medo de perder e amor. Mas medo de perder nunca fez bem pra relação nenhuma e se a gente não fica de olho o bicho do ciúme pode ficar maior que o dono e destruir tudo a sua volta como uma peste sem remédio destrói uma plantação linda de uma fazenda.

Aos poucos ela já não podia usar roupa curta, passar maquiagem, ir a algum lugar a noite sozinha ou falar com homens. Aos poucos, ela foi perdendo a vida. Bem antes dela estampar o jornal preto e branco da cidade pequena e assustar metade dos moradores com aquela história de amor que se transformou num ódio tão doentio que só podia mesmo ter terminado daquele jeito: alguns tiros, duas mortes e muito sangue.

Ninguém sabe dizer realmente como aconteceu. Parece que ele bateu nela pela milésima vez e ela gritou que seria a última. Foi. Ela tinha arranjado uma arma com não sei quem porque a polícia local não havia terminado aquela averiguação – provavelmente de algum dos caras estúpidos que ela sempre acabava conversando – e aí o que se sabe é que os vizinhos primeiro ouviram um tiro, um grito, outro tiro e um silêncio profundo. Mas também poderia ter sido um grito, um tiro, um silêncio profundo, outro tiro. Não houve bilhetes ou pedido de socorro. Não houve nada depois do segundo tiro. Só um silêncio comum das cidades pequenas pela madrugada,  esse um pouco mais agoniante que o costume.

Tão agoniante que alguém ligou pra polícia e contou meio abismado que achou que ouviu tiros, que pode ter sido fogos de artifício, mas que duvidava porque não era festa na cidade nem dia santo nem final de campeonato nem nada do tipo. E que a casa vizinha ficou demasiadamente quieta para os padrões daquele bairro. A polícia chegou uns cinco minutos depois porque ficava há um quarteirão dali. E nada mais pode fazer. 

E foi assim que o casal atípico foi parar naquele jornaleco da cidade, dividindo opiniões dos leitores que não sabiam se eram doença, amor ou loucura. Talvez os três ou, pode ser, nada disso. Ninguém poderá dizer. Alguns dizem que ele realmente amou a mulher que estampava o jornal e outros falam que amor não machuca. Mas não há uma só pessoa no mundo que pode definir em palavras o que o amor é. A única coisa que se pode dizer é que aquela história nunca poderia mesmo terminar bem.

O que ninguém esperava era que terminaria com um final trágico, estampados em letras garrafais e se tornado notícia de um jornal de cidade pequena, bem diferente do que costuma (ou deveria costumar a ser) o inevitável fim.


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