domingo, 1 de fevereiro de 2015

Não se Proteja Da Chuva



Estava procurando assunto pela web quando entrei no canal do TED (pra quem não sabe, um canal de palestras de diferentes áreas, sempre muito interessante) e cliquei num discurso de Sarah Kay, autora de poesia falada. A palestra me chamou atenção não só porque era de uma escritora, mas também pelo modo como ela começa, que poderia ter sido de mil jeitos, mas ela, ingênua como a menina que parece ser, decide por começar: se eu tiver uma filha, vou ensinar a ela... Então, Sarah Kay, de apenas 26 anos, começa a falar sobre coisas que aparentemente ela aprendeu com a vida, sobre o fato de que todas as dores do mundo podem ser curadas com chocolates (e ok, talvez nem todas, mas é pra isso que servem as botas de chuva, para impedir que a tempestade leve tudo) e de como é impossível fugir disso, depois que já estamos nesse mundo. Bem, a poeta, como todo bom poeta, é de um tom e genialidade incrível pra tratar do assunto e eu poderia ter elegido muitas partes pra falar, mas vou ficar com uma da qual eu já vinha pensando há alguns dias.

Em um determinado ponto de seu discurso, ora divertido, ora comovente, Sarah diz que a vida é como açúcar, se você tenta segurar ela esvai lentamente de sua mão, mas é impossível não querer prová-la. E que não importa o tamanho da sua mão, suas dores jamais vão caber nelas, você jamais vai conseguir se curar totalmente por mais que você deseje e, principalmente, você nunca vai conseguir sarar os machucados de qualquer outra pessoa (não totalmente).

Simples e genial como toda boa poesia, não?

Algumas coisas sempre doem na gente. Não importa o que. Pode ser aquele amor-bandido que não deu certo, a morte de alguém que lhe era muito especial, a desistência de um sonho porque não lhe coube uma outra escolha, a partida repentina de um amigo que, sem razão aparente, decidiu não mais falar com você. Não importa o que. Pode ser o fato de que você não se sente querido e amado na sua família, porque você é bom em tudo, mas não consegue se sentir feliz, ou porque não encontrou sua cara-metade-da-laranja mesmo que você diga aos quatro cantos que não acredita em alma gêmea. Pode ser a coisa mais banal ou a coisa que, se você contar pra alguém, você sabe que essa pessoa choraria com você. Não importa: alguma coisa sempre dói na gente. Não importa o que você faça nem quanto tempo passe.

Mas a gente tenta tamponar. A gente cai, se quebra todo ou toda, parece que não vai restar nenhum pedaço inteiro pra ser motivo de orgulho, que o mundo caiu em cima da gente e nunca vamos levantar. Aí a gente chora um pouquinho encolhida, se abraça de modo fetal que é pra retornar simbolicamente a única época que estávamos realmente protegidos de tudo, coloca um band-aid no machucado e no coração e segue em frente. Caio Fernando Abreu, sempre sábio, escreveu que a vida só tem dois caminhos: em frente ou enfrente. Na maioria das vezes, quando a dor dói demais e a gente acha que não daremos conta, a gente não enfrenta. Segue em frente. Que é tão válido quanto qualquer outra ação que nos distancie do que nos machucou.

Sarah Kay diz que há também dois modos de enfrentar a vida: como se estivesse numa luta, se defendendo de tudo, se isolando de qualquer coisa, sabendo que a qualquer distração você pode ser atacado, machucado, despedaçado, quebrado e esquecido sozinho para lidar com uma dor que nunca vai caber em sua mão. Ou, poeticamente, você pode entender que a vida é como chuva de açúcar, que se proteger não te protege de absolutamente nada, e que é muito mais doce você abrir suas palmas das mãos e deixar que os cristais doces caiam sobre você, sobre a vida e adoce um pouco a sua dor tão amarga.

Não há como passar por sua vida sem relacionar-se com que está ao nosso redor. E, se relacionar com o mundo, torna inevitável que saiamos machucados uma vez ou outra ou vez em sempre. A dor é inerente a nossa condição de ser humano. A dor é o que nos prova que a gente ainda está sendo contaminado por esse mundo cada vez mais cruel, individual e perigoso. A dor, para mim, é o que nos mostra que estamos vivos. Só sabemos que o sangue circula em nossas veias quando nos cortamos e ele escorre por nossa pele. Só notamos que temos sentimentos quando não conseguimos nos conter e as lágrimas correm por nosso rosto, mesmo quando a gente quer se fazer de forte em determinada situação. Só sabemos que ainda temos sentimentos quando nos deixamos sentir. E sentir é tão do amor quanto da dor.

Não se proteja da chuva, não se esconda ou fuja. Não são pedras que caem do céu. São cristais doces de açúcar. Podemos até nos proteger dele e nos proteger da gente, como uma lembrança constante de algo que nos machucou tanto e nosso medo racional, eu diria, de não se machucar de novo. Mas sair de mãos abertas, dançando, se divertindo com o doce mundo que podemos ter a nossa volta, pode ser muito melhor para nós mesmos e para nossas próprias feridas incuráveis.

A vida é feita de açúcar, sim. Prove-a, sem moderação. Mas nunca esqueça, como Sarah Kay diz em sua palestra, do chocolate no armário e das botas de chuva. Assim, se por um acaso a dose de açúcar for excessiva, e a tempestade vier sem um aviso, você vai conseguir se salvar no meio da enxurrada mesmo que pareça que, mais uma vez, tudo foi levado de você.


E se você se interessou pelo vídeo que originou essa crônica, é só clicar aqui (tá legendado)

Postado em Endless Poem, 30/01/2015

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