sábado, 2 de novembro de 2013

Quando A Gente Se Perde Dentro Da Gente


Abriu os olhos como se esperasse que da noite para o  dia –ou do dia para a noite, tanto faz, já que tinha perdido a noção das horas e do tempo –tudo tivesse mudado. Ou que, pelo menos, algum terremoto tivesse passado por ali enquanto dormia o sono-dos-calmantes e, ironicamente, tivesse bagunçado sua vida metodicamente organizada. Nada. Nenhuma blusa fora do lugar. Nenhum móvel caído ou quebrado. Tudo estava onde deveria estar, onde sempre esteve. A cama continuava vazia. Pior do que isso: fria. Mesmo que estivesse debaixo de três cobertores. Ainda que lá fora o sol estivesse, como dizem por aí, rachando o asfalto. Não era o que acontecia lá fora que importava –nesse tempo poderiam ter encontrado a cura da AIDS, a vacina contra o amor ou acontecido uma terceira guerra mundial –Nada disso importava. Era dentro dele que estava seu maior problema. É sempre dentro da gente que estão os problemas. Ou não estava, no caso dele. Ali, em seu coração, fazia um inverno mais rigoroso que as temperaturas do norte da Europa. Tudo havia morrido –inclusive e principalmente ele, ainda que ele estivesse respirando.


Falando assim até parece exagero, não é? Eu sei. Mas é justamente ao contrário. É por falta deles –dos exageros, quero dizer –que tudo aconteceu. Por falta da entrega, da vontade, da intensidade e daquele quê de eloquência que faz a vida ter algum sentido. E o ponto era exatamente este: ali não havia sentido. Norte, sul, leste, oeste. O sentido que o guiava havia morrido congelado dentro dele. Como se ele tivesse avançado um sinal vermelho num dia que havia nevado muito, em alta velocidade e não tivesse visto a curva da estrada a tempo de evitar um acidente. Derrapou e capotou nele mesmo. E rolou abismo abaixo. Desnorteado e desacreditado. Apesar de ter sobrevivido milagrosamente, havia morrido uma parte dele congelada enquanto esperava um socorro que nunca veio. E quando morre uma parte da gente, se não prestarmos atenção, morre a gente também. Morre nossos sonhos, planos, paixões e vontades. É necessário recomeçar antes que matemos nosso próprio coração, nisso que a gente costuma dizer de perder-se em si mesmo e nunca mais nos encontrar.

Ele poderia recomeçar –era novo, forte e antes do seu acidente, sonhador; Desses que acreditava em paz mundial, nas pessoas e num mundo sem miséria (e aqui não falo apenas da fome de comida, como também, vejam só, da fome de vontade de viver) –Mas só de ouvir a palavra recomeçar tinha ânsias mais fortes que a ressaca do dia anterior provocava, mais do que a mistura de vodca-tequila-calmante-antidepressivo lhe causava, mais até do que a parede a sua frente cor-sem-vida-verde-vômito-velho lhe proporcionava.


Odiava recomeços. Era como atestar sua própria derrota, mas fingir que, tudo bem, há algum outro motivo que se possa lutar. Independente do tempo que gastou, da força que depositou, do quanto lutou para chegar: fracassara. Recomeçar nada mais era do que um fim infeliz, só que com um nome mais promissor. E, se havia algo que ele odiava mais do que recomeços, eram os finais –e talvez por isso, apenas por isso, ainda não havia dado um final nele mesmo. Havia perdido. E era mais do que perder alguém que julgara importante ou algo valioso, era mais do que perder uma partida ou uma batalha. Havia perdido a guerra para ele mesmo. Mais doloroso do que as feridas que uma guerra pode causar –feridas se curam quando a gente resolve cuidarEle havia se perdido em si mesmo. Daquele jeito assustador que nem café, bebida, sono, calmante ou ponto final numa história há muito finalizada poderia ajuda-lo a superar. Porque quando a gente se perde dentro da gente, não há palavra amiga que possa nos salvar.


5 comentários:

  1. "É necessário recomeçar antes que matemos nosso próprio coração, nisso que a gente costuma dizer de perder-se em si mesmo e nunca mais nos encontrar."
    Só o que eu precisava ler. ;) O texto ficou muito bom mesmo ( o que não é novidade por aqui, o textos são perfeitos u.u). <3

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  2. Texto maravilhoso . Quanto talento ! Quando penso que você abalou em um texto, e que melhor não pode existir, você me aparece com outro mais surpreendente . Você merece todo sucesso do mundo, merece que seu blog seja reconhecido pq talento você tem demais . Torço muito por você .

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