Abriu os olhos como se esperasse que da noite para o dia –ou do dia para a noite, tanto faz, já
que tinha perdido a noção das horas e do tempo –tudo tivesse mudado. Ou que,
pelo menos, algum terremoto tivesse passado por ali enquanto dormia o
sono-dos-calmantes e, ironicamente, tivesse bagunçado sua vida metodicamente
organizada. Nada. Nenhuma blusa fora do lugar. Nenhum móvel caído ou quebrado.
Tudo estava onde deveria estar, onde sempre esteve. A cama continuava vazia. Pior
do que isso: fria. Mesmo que estivesse debaixo de três cobertores. Ainda que lá
fora o sol estivesse, como dizem por aí, rachando o asfalto. Não era o que
acontecia lá fora que importava –nesse tempo poderiam ter encontrado a cura da
AIDS, a vacina contra o amor ou acontecido uma terceira guerra mundial –Nada disso
importava. Era dentro dele que estava seu maior problema. É sempre dentro da
gente que estão os problemas. Ou não estava, no caso dele. Ali, em seu coração,
fazia um inverno mais rigoroso que as temperaturas do norte da Europa. Tudo
havia morrido –inclusive e principalmente ele, ainda que ele estivesse
respirando.
Falando assim até parece exagero, não é? Eu sei. Mas é
justamente ao contrário. É por falta deles –dos exageros, quero dizer –que tudo
aconteceu. Por falta da entrega, da vontade, da intensidade e daquele quê de eloquência
que faz a vida ter algum sentido. E o ponto era exatamente este: ali não havia
sentido. Norte, sul, leste, oeste. O sentido que o guiava havia morrido
congelado dentro dele. Como se ele tivesse avançado um sinal vermelho num dia
que havia nevado muito, em alta velocidade e não tivesse visto a curva da estrada a
tempo de evitar um acidente. Derrapou e capotou nele mesmo. E rolou abismo
abaixo. Desnorteado e desacreditado. Apesar de ter sobrevivido milagrosamente,
havia morrido uma parte dele congelada enquanto esperava um socorro que nunca
veio. E quando morre uma parte da gente, se não prestarmos atenção, morre a
gente também. Morre nossos sonhos, planos, paixões e vontades. É necessário
recomeçar antes que matemos nosso próprio coração, nisso que a gente costuma
dizer de perder-se em si mesmo e nunca mais nos encontrar.
Ele poderia recomeçar –era novo, forte e antes do seu
acidente, sonhador; Desses que acreditava em paz mundial, nas pessoas e num
mundo sem miséria (e aqui não falo apenas da fome de comida, como também, vejam
só, da fome de vontade de viver) –Mas só de ouvir a palavra recomeçar tinha
ânsias mais fortes que a ressaca do dia anterior provocava, mais do que a
mistura de vodca-tequila-calmante-antidepressivo lhe causava, mais até do que a
parede a sua frente cor-sem-vida-verde-vômito-velho lhe proporcionava.
Odiava recomeços. Era como atestar sua própria derrota, mas
fingir que, tudo bem, há algum outro motivo que se possa lutar. Independente do
tempo que gastou, da força que depositou, do quanto lutou para chegar:
fracassara. Recomeçar nada mais era do que um fim infeliz, só que com um nome
mais promissor. E, se havia algo que ele odiava mais do que recomeços, eram os
finais –e talvez por isso, apenas por isso, ainda não havia dado um final nele
mesmo. Havia perdido. E era mais do que perder alguém que julgara importante ou
algo valioso, era mais do que perder uma partida ou uma batalha. Havia perdido
a guerra para ele mesmo. Mais doloroso do que as feridas que uma guerra pode
causar –feridas se curam quando a gente resolve cuidar –Ele havia se perdido em
si mesmo. Daquele jeito assustador que nem café, bebida, sono, calmante ou
ponto final numa história há muito finalizada poderia ajuda-lo a superar. Porque quando a gente se perde dentro da gente, não há palavra amiga que possa nos salvar.
"É necessário recomeçar antes que matemos nosso próprio coração, nisso que a gente costuma dizer de perder-se em si mesmo e nunca mais nos encontrar."
ResponderExcluirSó o que eu precisava ler. ;) O texto ficou muito bom mesmo ( o que não é novidade por aqui, o textos são perfeitos u.u). <3
<333
ExcluirTexto maravilhoso . Quanto talento ! Quando penso que você abalou em um texto, e que melhor não pode existir, você me aparece com outro mais surpreendente . Você merece todo sucesso do mundo, merece que seu blog seja reconhecido pq talento você tem demais . Torço muito por você .
ResponderExcluiraiiiiiiin que coisa liiinda
Excluirobrigada obrigada obrigaaada
Ameiiiiiiiiii <3
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