terça-feira, 15 de abril de 2014

Do Tudo Ao Nada - Sobre Caminhar Sem Destino



Primeiro o tudo. Festas, beleza, bebidas e gatos entrando e saindo de sua vida. Ela era do tipo que enlouquecia o homem; com artigo definido porque era definido por ela. Os olhos, diziam uns, eram convites irrecusáveis para viagens inesquecíveis. A boca, respondiam outros,  parecia ter sido desenhada para o pecado. Apesar das controvérsias, todos concordavam: cada curva naquele corpo era uma chance a mais de se capotar no meio da noite chuvosa e fria que ela sempre oferecia. Porque não havia ali dias de sol e noites de lua cheia. Ela nunca compreendeu o que causava; assim como nunca chegou nem perto de descobrir por que acabara. Mas sabia que, desde muito nova, enlouquecia quem quisesse enlouquecer. E, vez ou outra, se deixava enlouquecer também.

Agora ela estava sozinha. Pensando bem, apesar de ter sido alguém cheia de companhia, sempre havia sido assim, sozinha. Sentada em frente sua escrivaninha que ficava de baixo da janela que mostrava uma paisagem linda que ela já não apreciava. A sua frente, papeis que ela tentava ordenar. Queria escrever. Mas escrever, ela sabia, exigiria mais dela do que ela queria gastar naquele momento. Queria dizer como é que ela chegou ali, mas não sabia em que rua havia se perdido. Só sabia que se perdera em algum momento entre uma festa e uma ressaca, entre uma noite esplêndida e um corpo estranho de um rosto sem nome ao seu lado. Sabia tão bem disso que já não lutava mais para sair da situação que ela chegara com seus próprios pés, perdida em sua própria busca e arruinada pelos seus próprios sonhos.

Tragou um cigarro desses meio vagabundos, fedorentos, ardidos. Do pior tipo que você pode imaginar, bem pior do que todos os outros, quero dizer. Depois tomou um café na xícara já suja. Um café desses meio frio, meio amargo, meio fraco demais para fazer com que ela acordasse para vida. Ao invés de acordar, queria dormir. Aí resolveu pegar as balinhas que ganhou outro dia de um cara que tinha um sorriso bonito e um nome estranho. Nunca aceite coisas de estranho, quase ouviu sua mãe dizer, mas já fazia muito tempo que não falava com a mãe. Ela nem mais se lembrava do motivo. Num dia ela tinha sido a princesa da família; no outro escorraçada de sua própria casa a gritos e ofensas. Ela não tinha se ligado na época de como havia acontecido porque estava com adrenalina demais achando que ia ganhar o mundo. Pobre coitada, mal faz ideia de que foi ali que começou a se perder de si mesma. Então, como já não sabia nada de sua mãe, e seu pai nunca lhe foi de grande utilidade, ela pegou logo as três balinhas de uma vez e colocou na boca.

Queria escrever sobre um tempo que, sabia, não voltava mais. Mas que ainda estava ali preso nela como ela estava algemada em seus próprios erros. Uma vez, lá aos quinze, disseram a ela que o bom da vida é que a gente pode errar tantas e tantas vezes que sempre haverá um modo de consertar as coisas. Agora, com vinte e tantos e sabendo bem menos do que achava que sabia quando ainda era uma adolescente metida a rebelde de calça rasgada e furos na orelha, ouvindo uma banda que não era rock, mas que ela gritava pra todo mundo o quão rockeira era ela, já descobrira que nem tudo pode ser consertado, a gente não tem direitos de errar o tempo todo, nem de magoar quem nos ama, nem de abandonar quem somos para seguir o que quer que seja que esteja apontando pra nossa direção.

 Esse era o ruim da vida: chega uma hora que não há folha em branco, corretivo, rabiscos e pontos que possam melhorar a história. Ela chega ao fim. Se a gente só faz merda, nem sabe que destino queremos alcançar, chega ao fim antes da hora e acaba daquele jeito ali, como um blues meio antigo, insuportável no final. Como um café meio velho, que carrega uma borra ao fundo que transforma tudo intragável no final. Como um livro sem sentido que foi recusado pela editora só pelo título que, ela jurava, era o melhor de todos. Convencia pela capa. Mas a capa não se sustenta sozinha. E então já não lhe havia mais final. Ela queria escrever de um tempo que ela foi feliz –e sabia. Porque ela sempre achou ridículo pessoas que diziam que haviam sido felizes e não sabiam. Se a gente não sabe, questionava ela, então não fomos tão felizes assim. Ninguém duvida da sua felicidade –ela fica estampada em letras garrafais, olhares brilhantes, sorriso aberto e cantoria pelos dias cinzentos –Todo mundo sempre questiona sua tristeza. Falar um pouco das lembranças que ainda não haviam sido apagadas –mesmo que sem o som, sem as risadas, sem as cores e sem o tom de antes. Era triste admitir, mas ela havia se tornado uma dessas fotografias velhas. Parece assim tão bonitas quando emolduradas. Mas perdeu seus detalhes, sua cor, sua vida e seu amor. E ela nem sabe que amor que perdeu. Só sabe que nunca o encontrou. 

Mas só ensaiou umas desculpas numa letra esgarranchada porque ela já não conseguia segurar a caneta com precisão ou enxergar a folha que estava ali, bem na sua frente, por baixo de sua mão.

Depois das festas, a ressaca. Depois das paixões, a sensação de vazio que a atacava assim que pegava suas roupas e saía do motel, às vezes apenas um quarto estranho, às vezes também apenas seu próprio quarto. Como se não conseguisse se tocar depois de uma noite que, ela sabia, havia se divertido bastante. Sentia nojo dela em ocasiões nada especiais. Como se fedesse, independente do perfume francês que usasse.  Sentia vontade, por vezes, de se livrar de sua própria pele e talvez, só talvez, conseguir purificar sua alma. Mas sabia que não era possível, então apenas deixava seu coração se quebrar mais uma vez permitindo entrada de estranhos e a saída de conhecidos, sem nem conferir se a festa que oferecia valia o convidado especial da noite. Depois da beleza estonteante, um amontoado de mais ossos do que carne, meio assim, cadavérico. Depois de olhos que enlouqueceram, olhos que já não são vivos, que perderam a cor, o brilho e o convite irrecusável. Depois de sorrisos que davam a qualquer um segundas, terceiras e quartas intenções, apenas um amontoado de dentes amarelos, assim, quase caindo, presos apenas por um fio; um hálito de quem já havia se perdido do fio que se ligava a ela mesma.

Assinou qualquer coisa numa folha que já não enxergava. Não entendeu a letra. Sua mão tremida já não dava conta de segurar o lápis, a boca marcada já não conseguia manter o cigarro entre os lábios. Tudo ficou assim, de repente, meio embaçado. Meio amargo também, que nem o café que ela tinha quase certeza, derramou por sobre a carta. Que nem o blues ao fundo que ela não pôs para tocar, mas que ainda assim conseguia ouvir. Droga, foi quase o último pensamento, ninguém vai entender essa merda. Aí quase sorriu, porque ela mesmo já não entendia. O cigarro caiu no chão e com certeza causaria um furo imperdoável no tapete que ganhara de presente da mãe –o último desde que foi jogada para fora da casa e conheceu o lixo das ruas. O lixo que ela também agora era.  – Aí não deu mais conta e fechou os olhos, assim, sem lágrimas, sem dor, sem revolta. Mas com uma tonelada de culpa e uma enxurrada de arrependimento –tarde de mais para se mudar alguma coisa.


Quem não sabe para onde está indo, não vai notar se realmente chegou. Ela nunca chegou. E depois do tudo, a menina que podia ter alcançado o céu, mas chegou ao inferno sem conhecer as estrelas, se tornou mesmo, por escolhas próprias e erros sem conserto, um nada. Nada daquilo que um dia sua pobre mãe, seu pai assim nem tão pobre e ela mesmo sonhou. Perdida assim numa busca incessante para tentar achar um tudo, mas no fim não suportando o nada que se transformou.



Esse texto não tem compromisso com a realidade nem quer expressar a minha opinião sobre o assunto. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência da minha mente criativa.

2 comentários:

  1. "Se a gente só faz merda, nem sabe que destino queremos alcançar, chega ao fim antes da hora e acaba daquele jeito ali, como um blues meio antigo, insuportável no final. " melhor parte <3

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