Ela balançava os pés na sala de espera, sentada numa poltrona
de cor estranha que ela mesma arrumou para ficar reta enquanto olhava o número
pendurado sobre a porta, impaciente. Estava meio torto. O número. Assim, coisa de milímetros. Assim, coisa que
quase ninguém percebia. Mas ela, transbordada, nunca se cabia em quases. A
secretária tentava não olhar para ela enquanto rabiscava em sua agenda e ela não
olhava para a secretária enquanto balançava os pés no ritmo de uma música que não
sabia a letra, só melodia. Tun. Tun. Tin. Tin. Tuntuntuntun. Tin. Era sempre
constrangedor esses momentos de espera para ser atendida. Estava ali apenas há
alguns minutos –tempo apenas de uma música chegar ao fim em sua mente –mas pareciam
horas. Ela não media por relógio. Mas assim: dois quadros tortos, uma cadeira
fora do lugar, o número da porta caindo, o computador ligeiramente mais para o
lado direito, e, por Deus, a blusa daquela secretária estava torta, ela não se
olhou no espelho? Isso era mais do que havia reparado na visita passada –o que
talvez significasse que ela estivesse esperando a mais tempo. Ou não –Não deveria
estar melhorando?
Não melhorou.
A porta do número 19 abriu e o nove meio que balançou no topo.
Ela quase gritou. Quase, mas não era de quases.
Lá de dentro saiu um quase senhor quase jovem passando por ela sem olhar
e sem encarar a secretária, marcando a outra consulta. Somos todos iguais, ela
pensou. O médico saiu logo atrás, olhou para ela, deu um quase sorriso de
canto, disse vamos? e ela foi. Na verdade, era um psiquiatra, mas ela não gostava
muito desse termo –psiquiatra –para não dizer que ela não gostava nem um pouco,
então recorria ao médico, só para não ter que explicar que não, ela não era
louca. E não era. Só transbordada, o que era meio diferente. E meios diferentes,
você sabe, se encaixam na categoria tratada por psiquiatras.
Ele era um cara legal –o psiquiatra, estou dizendo – Mas usava
gravatas com linhas tortas e isso a deixava inquieta; não conseguia se
concentrar e isso a frustrava. Não se lembrava como aconteceu. Quando, onde,
por quê. As perguntas que ele sempre lhe fazia antes de receitar mais uma caixa
de remédios tarja preta que deixava seu saldo no banco bem vermelho. Ela nunca
gostou de nada torto desde criança e talvez por isso –só por isso –ela andasse
detestando sua vida cheia de curvas e bifurcações. De quase chegadas e quase
partidas. Ela detestava quase, se lembra? Era pedir muito uma estrada plana,
sem buracos, reta e sem voltas rumo ao infinito?
Pelo jeito, era.
Mas, voltando às perguntas, ela não sabia quando perdeu o
controle e caiu naquela armadilha trançada, cheia de cordas tortas, quadros
fora do lugar e bagunças sufocantes. Talvez tenha sido depois que perdeu a mãe
para um câncer maligno, pode ser, e ela percebeu que não podia controlar a vida
–como ela tanto gostava de (se) controlar –; a mãe foi sua grande melhor amiga
e perde-la de um jeito tão cruel e tão cedo havia sido um baque grande demais
para nossa personagem principal não surtar. Surtou. Ou pelo menos foi isso que
disseram que aconteceu ao perder o emprego e ir parar naquele consultório de
número torto pendurado na porta. Ela até que tentou cair na bebida –achava que
saía mais barato, veja bem –Mas nunca se deu muito bem com álcool. Então ela
teve que achar um outro vício.
Arrumar as coisas milimetricamente parecia normal, até virar
patologia catalogada num manual qualquer, e então a arrastarem para aquele
consultório número 19 num prédio bem no meio de uma bifurcação. Não ache graça
na ironia: chegar lá era um grande sacrifício de atravessar ruas cheias de
buracos, curvas que ela não entendia e pessoas com roupas tortas pelo corpo. Dava
agonia e desespero e ela tinha vontade de correr para a casa segura e se
desinfetar daquela sujeira com um longo banho e uma vasilha de álcool gel como
creme de corpo. Mas ela sempre chegava ao consultório porque era uma mulher que
odiava quases, não porque era uma mulher que não desistia pelo caminho. Esperava
por uns cinco minutos, observava as coisas fora do lugar, era chamada pelo
médico, se irritava com aquelas gravatas malditas de linhas tortas, sentava e
ajeitava umas duas canetas, ouvia a pergunta típica dele de e aí?-melhorou? Enquanto
assinava uma nova receita com mais remédios cheios de efeitos colaterais e bem
acima do que seu dinheiro poderia pagar.
Era melhor ter ido me viciar em bebida, ela pensava cá com
seus botões completamente retos e arrumados em seu corpo.
Muito preocupado com a solução rápida e localizada, era o
médico. Pouco preocupado com a localização do verdadeiro problema.
Ela disse que havia melhorado, mas sabia que era uma
mentira. Uma caneta destampada-uma agenda na transversal da mesa -gravatas com
linhas tortas-dois quadros tortos-malditos enfeites de mesa! E ele deu um sorriso
de como quem diz boa-menina-eu-disse-que-ia-resolver-seu-problema.
Não resolveu, ela pensou, e quinze minutos depois de ter
entrado já estava saindo. Já tinha outro paciente na sala de espera olhando
para baixo. Te vejo daqui quinze dias. E ela concordou e confirmou com a
secretária de roupa torta e saiu sem olhar para o outro paciente e não disse
que não voltaria, que aquela foi a última chance do médico –e dela –Porque já
estava cansada de quases tentativas com total fracasso.
E foi para a casa desviando das listras tortas do passeio
pensando em como odiava linhas tortas e como dava trabalho desinfetar aquilo
dela com álcool e então teve um clarão. Desses tipo de filme mesmo, desses que
até cegam se você não prestar muito bem atenção.
Era a vida dela que estava torta e não as linhas, os
quadros, as canetas, as gravatas e as roupas mal vestidas. Não eram as ruas, as
bifurcações, as calçadas mal planejadas e a ausência de retas infinitas. Não eram
as pessoas que eram feitas de quase chegadas e quase partidas, era ela que
quase partia e quase chegava. E se o certo
era achar uma solução rápida e localizada e sem dor ao invés de tratar
de localizar o problema que ela nem sabia que era um problema antes de a
jogarem naquele consultório número 19... Ela sorriu e pisou no espaço entre uma
calçada e outra.
Uma pena que não tinha mais tempo para avisar ao médico que
havia sido mais rápida do que ele ao encontrar sua própria solução –bem mais
barata e eficaz do que a receita eu ela tinha na mão.
Que texto foi esse?! Pelo amor, isso que eu chamo de uma boa pedida para leitura. E o mais incrível é que mesmo sendo pouco extenso, não me deu a menor vontade de parar no meio do caminho sem terminar a rota por preguiça. Pelo contrário, eu queria mesmo era saber se o "problema" dela haveria solução. Amei!
ResponderExcluirParabéns, o blog é lindo demais e o que favorece mesmo, são os bons conteúdos que encontrei por aqui.
Beijos
http://escrituras-da-alma.blogspot.com.br/
Nossa, eu nem sei o que responder a um comentário tão lindo como esse
Excluirapenas: obrigada, de verdade
fiquei sem palavras :3333