quinta-feira, 26 de junho de 2014

Uma Mulher de Quases



Ela balançava os pés na sala de espera, sentada numa poltrona de cor estranha que ela mesma arrumou para ficar reta enquanto olhava o número pendurado sobre a porta, impaciente. Estava meio torto. O número. Assim, coisa de milímetros. Assim, coisa que quase ninguém percebia. Mas ela, transbordada, nunca se cabia em quases. A secretária tentava não olhar para ela enquanto rabiscava em sua agenda e ela não olhava para a secretária enquanto balançava os pés no ritmo de uma música que não sabia a letra, só melodia. Tun. Tun. Tin. Tin. Tuntuntuntun. Tin. Era sempre constrangedor esses momentos de espera para ser atendida. Estava ali apenas há alguns minutos –tempo apenas de uma música chegar ao fim em sua mente –mas pareciam horas. Ela não media por relógio. Mas assim: dois quadros tortos, uma cadeira fora do lugar, o número da porta caindo, o computador ligeiramente mais para o lado direito, e, por Deus, a blusa daquela secretária estava torta, ela não se olhou no espelho? Isso era mais do que havia reparado na visita passada –o que talvez significasse que ela estivesse esperando a mais tempo. Ou não –Não deveria estar melhorando?

Não melhorou.

A porta do número 19 abriu e o nove meio que balançou no topo. Ela quase gritou. Quase, mas não era de quases.  Lá de dentro saiu um quase senhor quase jovem passando por ela sem olhar e sem encarar a secretária, marcando a outra consulta. Somos todos iguais, ela pensou. O médico saiu logo atrás, olhou para ela, deu um quase sorriso de canto, disse vamos? e ela foi. Na verdade, era um psiquiatra, mas ela não gostava muito desse termo –psiquiatra –para não dizer que ela não gostava nem um pouco, então recorria ao médico, só para não ter que explicar que não, ela não era louca. E não era. Só transbordada, o que era meio diferente. E meios diferentes, você sabe, se encaixam na categoria tratada por psiquiatras.

Ele era um cara legal –o psiquiatra, estou dizendo – Mas usava gravatas com linhas tortas e isso a deixava inquieta; não conseguia se concentrar e isso a frustrava. Não se lembrava como aconteceu. Quando, onde, por quê. As perguntas que ele sempre lhe fazia antes de receitar mais uma caixa de remédios tarja preta que deixava seu saldo no banco bem vermelho. Ela nunca gostou de nada torto desde criança e talvez por isso –só por isso –ela andasse detestando sua vida cheia de curvas e bifurcações. De quase chegadas e quase partidas. Ela detestava quase, se lembra? Era pedir muito uma estrada plana, sem buracos, reta e sem voltas rumo ao infinito?

Pelo jeito, era.

Mas, voltando às perguntas, ela não sabia quando perdeu o controle e caiu naquela armadilha trançada, cheia de cordas tortas, quadros fora do lugar e bagunças sufocantes. Talvez tenha sido depois que perdeu a mãe para um câncer maligno, pode ser, e ela percebeu que não podia controlar a vida –como ela tanto gostava de (se) controlar –; a mãe foi sua grande melhor amiga e perde-la de um jeito tão cruel e tão cedo havia sido um baque grande demais para nossa personagem principal não surtar. Surtou. Ou pelo menos foi isso que disseram que aconteceu ao perder o emprego e ir parar naquele consultório de número torto pendurado na porta. Ela até que tentou cair na bebida –achava que saía mais barato, veja bem –Mas nunca se deu muito bem com álcool. Então ela teve que achar um outro vício.

Arrumar as coisas milimetricamente parecia normal, até virar patologia catalogada num manual qualquer, e então a arrastarem para aquele consultório número 19 num prédio bem no meio de uma bifurcação. Não ache graça na ironia: chegar lá era um grande sacrifício de atravessar ruas cheias de buracos, curvas que ela não entendia e pessoas com roupas tortas pelo corpo. Dava agonia e desespero e ela tinha vontade de correr para a casa segura e se desinfetar daquela sujeira com um longo banho e uma vasilha de álcool gel como creme de corpo. Mas ela sempre chegava ao consultório porque era uma mulher que odiava quases, não porque era uma mulher que não desistia pelo caminho. Esperava por uns cinco minutos, observava as coisas fora do lugar, era chamada pelo médico, se irritava com aquelas gravatas malditas de linhas tortas, sentava e ajeitava umas duas canetas, ouvia a pergunta típica dele de e aí?-melhorou? Enquanto assinava uma nova receita com mais remédios cheios de efeitos colaterais e bem acima do que seu dinheiro poderia pagar.

Era melhor ter ido me viciar em bebida, ela pensava cá com seus botões completamente retos e arrumados em seu corpo.

Muito preocupado com a solução rápida e localizada, era o médico. Pouco preocupado com a localização do verdadeiro problema.

Ela disse que havia melhorado, mas sabia que era uma mentira. Uma caneta destampada-uma agenda na transversal da mesa -gravatas com linhas tortas-dois quadros tortos-malditos enfeites de mesa!  E ele deu um sorriso de como quem diz boa-menina-eu-disse-que-ia-resolver-seu-problema.

Não resolveu, ela pensou, e quinze minutos depois de ter entrado já estava saindo. Já tinha outro paciente na sala de espera olhando para baixo. Te vejo daqui quinze dias. E ela concordou e confirmou com a secretária de roupa torta e saiu sem olhar para o outro paciente e não disse que não voltaria, que aquela foi a última chance do médico –e dela –Porque já estava cansada de quases tentativas com total fracasso.

E foi para a casa desviando das listras tortas do passeio pensando em como odiava linhas tortas e como dava trabalho desinfetar aquilo dela com álcool e então teve um clarão. Desses tipo de filme mesmo, desses que até cegam se você não prestar muito bem atenção.

Era a vida dela que estava torta e não as linhas, os quadros, as canetas, as gravatas e as roupas mal vestidas. Não eram as ruas, as bifurcações, as calçadas mal planejadas e a ausência de retas infinitas. Não eram as pessoas que eram feitas de quase chegadas e quase partidas, era ela que quase partia e quase chegava. E se o certo  era achar uma solução rápida e localizada e sem dor ao invés de tratar de localizar o problema que ela nem sabia que era um problema antes de a jogarem naquele consultório número 19... Ela sorriu e pisou no espaço entre uma calçada e outra.


Uma pena que não tinha mais tempo para avisar ao médico que havia sido mais rápida do que ele ao encontrar sua própria solução –bem mais barata e eficaz do que a receita eu ela tinha na mão.




2 comentários:

  1. Que texto foi esse?! Pelo amor, isso que eu chamo de uma boa pedida para leitura. E o mais incrível é que mesmo sendo pouco extenso, não me deu a menor vontade de parar no meio do caminho sem terminar a rota por preguiça. Pelo contrário, eu queria mesmo era saber se o "problema" dela haveria solução. Amei!
    Parabéns, o blog é lindo demais e o que favorece mesmo, são os bons conteúdos que encontrei por aqui.
    Beijos
    http://escrituras-da-alma.blogspot.com.br/

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    1. Nossa, eu nem sei o que responder a um comentário tão lindo como esse
      apenas: obrigada, de verdade
      fiquei sem palavras :3333

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Comentários

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